A Biblioteca Joanina — uma pérola do barroco e um tesouro da Universidade de Coimbra — foi edificada como um gesto imperialista que ambicionava encapsular o conhecimento e ostentar o domínio colonial. Esta fortaleza do saber (e do poder) é também o refúgio de uma pequena colónia de morcegos, que encontraram nas suas condições ambientais o lugar ideal para a sua casa. Os insetos e as lagartas presentes nos 55 mil livros da biblioteca alimentam os morcegos, e o silêncio noturno oferece-lhes uma liberdade quase ilimitada. A noite é o momento em que saem do seu esconderijo e começam a trabalhar na conservação daquele espólio. A existência dos morcegos na Biblioteca Joanina serve de centelha ativadora dos nossos pensamentos, e, assim esperamos, dos vossos, que visitam agora a Bienal.
Na conceção crítica da Meia-noite, a noite é considerada como espaço de fluidez, de quebra de normas, lugar aberto a outras possibilidades de visão, de conhecimento, de interação, aberto a outros corpos. É encarada como espaço de resistência e liberdade, lugar político, metafísico e vivencial. Como território onde ocorrem as relações simbióticas de codependência e coevolução entre humanos e outros seres, a noite fascina-nos. Interessa-nos este pluralismo que «transvalora» as categorias normativas universais.
A universidade é, por excelência, um lugar de produção de conhecimento e de estabelecimento do poder. Se as bibliotecas são o epítome de (um determinado tipo protegido de) conhecimento e os morcegos da escuridão, aqui encontramo-los numa relação de mútua dependência. Assim, tanto a biblioteca como o morcego se transformam em sujeitos políticos. Uma ideia central da nossa pesquisa para a Meia-noite foi como questionar a produção de conhecimento corporizada pela Biblioteca Joanina. Como propor epistemologias alternativas? Como aprender com a inteligência dos morcegos? E como imaginar outras formas de interação?
Pretendemos libertar-nos das narrativas e do dualismo normativo do pensamento moderno que fraturam a sociedade contemporânea e geram uma imbricação de discriminações — como o racismo, o classismo, o sexismo, o idadismo, o capacitismo, para referir apenas algumas —, através da utilização de metodologias que nos ajudam a experimentar formas criativas, inesperadas e marginais de produção de conhecimento. Colocámos os óculos de morcego de Coimbra por cima dos nossos óculos feministas e convidámos um grupo de artistas a partilhar as suas ferramentas artísticas e críticas. Ferramentas que multiplicam e ligam mundos e que se situam depois do patriarcado — no futuro, portanto.
Inspirada na noite, esta proposta para a Bienal é uma tentativa de abrir um interstício especulativo, que não propõe qualquer resposta, mas gera muitas questões. Uma tentativa de inventar outros modos de existência, de relação, de ser e de vivermos juntos.
Elfi Turpin & Filipa Oliveira
Curadoras Anozero’21–22
A Biblioteca Joanina — uma pérola do barroco e um tesouro da Universidade de Coimbra — foi edificada como um gesto imperialista que ambicionava encapsular o conhecimento e ostentar o domínio colonial. Esta fortaleza do saber (e do poder) é também o refúgio de uma pequena colónia de morcegos, que encontraram nas suas condições ambientais o lugar ideal para a sua casa. Os insetos e as lagartas presentes nos 55 mil livros da biblioteca alimentam os morcegos, e o silêncio noturno oferece-lhes uma liberdade quase ilimitada. A noite é o momento em que saem do seu esconderijo e começam a trabalhar na conservação daquele espólio. A existência dos morcegos na Biblioteca Joanina serve de centelha ativadora dos nossos pensamentos, e, assim esperamos, dos vossos, que visitam agora a Bienal.
Na conceção crítica da Meia-noite, a noite é considerada como espaço de fluidez, de quebra de normas, lugar aberto a outras possibilidades de visão, de conhecimento, de interação, aberto a outros corpos. É encarada como espaço de resistência e liberdade, lugar político, metafísico e vivencial. Como território onde ocorrem as relações simbióticas de codependência e coevolução entre humanos e outros seres, a noite fascina-nos. Interessa-nos este pluralismo que «transvalora» as categorias normativas universais.
A universidade é, por excelência, um lugar de produção de conhecimento e de estabelecimento do poder. Se as bibliotecas são o epítome de (um determinado tipo protegido de) conhecimento e os morcegos da escuridão, aqui encontramo-los numa relação de mútua dependência. Assim, tanto a biblioteca como o morcego se transformam em sujeitos políticos. Uma ideia central da nossa pesquisa para a Meia-noite foi como questionar a produção de conhecimento corporizada pela Biblioteca Joanina. Como propor epistemologias alternativas? Como aprender com a inteligência dos morcegos? E como imaginar outras formas de interação?
Pretendemos libertar-nos das narrativas e do dualismo normativo do pensamento moderno que fraturam a sociedade contemporânea e geram uma imbricação de discriminações — como o racismo, o classismo, o sexismo, o idadismo, o capacitismo, para referir apenas algumas —, através da utilização de metodologias que nos ajudam a experimentar formas criativas, inesperadas e marginais de produção de conhecimento. Colocámos os óculos de morcego de Coimbra por cima dos nossos óculos feministas e convidámos um grupo de artistas a partilhar as suas ferramentas artísticas e críticas. Ferramentas que multiplicam e ligam mundos e que se situam depois do patriarcado — no futuro, portanto.
Inspirada na noite, esta proposta para a Bienal é uma tentativa de abrir um interstício especulativo, que não propõe qualquer resposta, mas gera muitas questões. Uma tentativa de inventar outros modos de existência, de relação, de ser e de vivermos juntos.
Elfi Turpin & Filipa Oliveira
Curadoras Anozero’21–22