O ruído dos sonhos
Miguel Ângelo Rocha, Isabel Madureira Andrade, Russell Floersch
2022
até 
3
December 2022
Círculo Sede, Círculo Sereia
O ruído dos sonhos

O ruído dos sonhos

Exposição Coletiva

O ruído dos sonhos

Exposição Coletiva

8
October 2022
a
3
December 2022
Círculo Sede, Círculo Sereia

Às vezes certas tardes uma cara
Olha-nos do mais fundo dum espelho;
A arte deve ser como esse espelho
Que nos revela a nossa própria cara.

Jorge Luís Borges, «Arte Poética», em Poemas Escolhidos, Dom Quixote (1985)


Perante um recipiente com água e uma vara imersa, Ptolomeu ou Descartes e outros sábios do olho são assaltados pela estranheza que aí se dá ao sensível. Imóveis num-fora-dela, pensam-na, cristalizada num artificialismo discursivo. Porém, não se lançam num qualquer interior. Não habitam. Na dúvida, não são-com-ela-no-mundo1, envoltos num estremecimento e assombro.

Em questão, está o mistério da visão, a imponderável dialética do visível. Curiosidade sem dúvida, modo de ver despertado pela exposição O ruído dos sonhos, dando ao sensível, tal como o dá a dissemelhança de coisas no mundo, a diversidade de obras de Miguel Ângelo Rocha, Isabel Madureira Andrade e Russell Floersch.

Diz Sócrates: o olho arrasta o corpo na fuga da caverna, a masmorra da visão onde as sombras e os ecos são carcereiros, em direção à luz que dá a ver Formas imateriais e imutáveis.2 Entretanto, omite a visão que acontece no movimento do corpo. O ruído dos sonhos é uma manifestação de Formas, porém alheias à metafísica, sem idealismo ou intangibilidade.

Perante estas Formas, a visão acontece sem tautologia, nas espessuras de uma teia de relações entre obra, espaço, corpo, que abre uma dobra, rasga a presença retiniana, e desprende a latência do invisível. Quando o espírito deposita no imaginário um excesso que não está, porém emana da obra, agora extensão do corpo, suplemento encarnado, carne sua.3 Ser-com estas Formas, habitar segundo um princípio de negatividade, é a dialética de desmontar o sensível, o pensamento, o eu que vê, e se vê, de erguer o sobredeterminado, recriação incessante.4

Miguel Ângelo Rocha é um experimentador da experiência, de fazer fazendo, explorando a interdisciplinaridade de materiais e técnicas e instigando a experiência do sempre impreciso, do encontrar procurando, dos ritmos diversos nos movimentos do olho e do corpo, do esvaziar e do resolver do consciente.

Isabel Madureira Andrade trabalha o desenho e a pintura com recurso a uma matriz que encontra ou produz, subjacência com que sonda o aflorar da imagem num gesto indexante próximo da frottage, confrontando a possibilidade do controlo e a imprevisibilidade plástica dos materiais.

Russell Floersch explora a tensão entre memória e esquecimento, numa prática experimental de construção e pintura de modelos escultóricos referentes a um lugar e um estender do seu tempo, e insinua narrativas, gera o arbitrário na ocultação através da tinta, da visualidade de uma ausência.

Pinturas, esculturas, construções, objetos. Potência e dinâmica, olho e mão. Espasmos em expansão e contração, intuição e decisão. Propõem-se sem ilusão ou representação, sem autonomia ou especificidade. São o cair no rasgão aberto, rendição ao incidente. Delírio sem ficção.

A questão não é o que acontece; é, antes, algo acontece. Um espanto. Abalo, choque, perturbação. Um indeterminável. Indizível, inexpressável, inapresentável. Elevação ao limiar em que colidem e convivem a angústia, privação de qualquer retórica e poética referentes ao que acontece, e a volúpia, alívio de algum porvir incerto e ambíguo, fulgor das possibilidades de significação, reconhecível só no acontecimento.5

O algo acontece é performance, happening. Fenómeno do corpo em ação, perturbação semântica sem ensaio nem guião; o irrepetível6 — fatal paradoxo do in-atual. Contingente e precário, um agora enquanto êxtase temporal. É dis-cronia, anacronismo do contemporâneo extemporâneo, descompasso do já-ainda não.7 É constelação de agoras em reconfiguração permanente. Tempo tão «demasiado originário» quão «demasiado novo», o inatual trava um combate com o devir linear do tempo.8 O heterocrónico constrói um contra-espaço, espelho opaco. Um fora-do-espaço, existente e localizável no exterior, porém que o neutraliza e recria, uma heterotopia de espectros visíveis.9

Ser-com em algum, em qualquer, tempo e lugar; uma certa deficiência na aderência do olho à luz exterior — uma cosmogénese, elenco de alteridades, de simultaneidades e promiscuidades. Limiar do entre, O ruído dos sonhos é a fina membrana onde acontece a cisão do sensível e do ser.

Ricardo Escarduça

1 Expressão adaptada do termo enunciado por Martin Heidegger, Ser e Tempo (trad. Márcia Schuback), Editora Vozes (2015).
2 Platão, The Republic, VII, 515b 3–13, 517b 2–3, 518c 5–8 (trad. Tom Griffith), The Press Syndicate of the University of Cambridge (2003).
3 Maurice Merleau-Ponty, O olho e o espírito (trad. Luís Manuel Bernardo), Nova Vega (2018).
4 Georges Didi-Huberman, Diante do tempo, história da arte e anacronismo das imagens (trad. Luís Lima), Orfeu Negro (2017).
5 Jean-François Lyotard, «The sublime and the avant-guarde», em Documents of contemporary art, Whitechapel Gallery e The MIT Press (2010).
6 Allan Kaprow, How to make a happening (1966), vinil 12 polegadas, © 2022 Estate of Allan Kaprow. Consultado em: www.primaryinformation.org/files/allan-kaprow-how-to-make-a-happening.pdf
7 Giorgio Agamben, «What is the contemporary?», em What is an apparatus?, and other essays (trads. David Kishik e Stefan Pedatella), Stanford University Press (2009).
8 Georges Didi-Huberman, Diante do tempo, história da arte e anacronismo das imagens (trad. Luís Lima), Orfeu Negro (2017).
9 Michel Foucault, «Of other spaces: utopias and heterotopias», em The Visual Culture Reader, Routledge, Taylor and Francis Group (1998).

Às vezes certas tardes uma cara
Olha-nos do mais fundo dum espelho;
A arte deve ser como esse espelho
Que nos revela a nossa própria cara.

Jorge Luís Borges, «Arte Poética», em Poemas Escolhidos, Dom Quixote (1985)


Perante um recipiente com água e uma vara imersa, Ptolomeu ou Descartes e outros sábios do olho são assaltados pela estranheza que aí se dá ao sensível. Imóveis num-fora-dela, pensam-na, cristalizada num artificialismo discursivo. Porém, não se lançam num qualquer interior. Não habitam. Na dúvida, não são-com-ela-no-mundo1, envoltos num estremecimento e assombro.

Em questão, está o mistério da visão, a imponderável dialética do visível. Curiosidade sem dúvida, modo de ver despertado pela exposição O ruído dos sonhos, dando ao sensível, tal como o dá a dissemelhança de coisas no mundo, a diversidade de obras de Miguel Ângelo Rocha, Isabel Madureira Andrade e Russell Floersch.

Diz Sócrates: o olho arrasta o corpo na fuga da caverna, a masmorra da visão onde as sombras e os ecos são carcereiros, em direção à luz que dá a ver Formas imateriais e imutáveis.2 Entretanto, omite a visão que acontece no movimento do corpo. O ruído dos sonhos é uma manifestação de Formas, porém alheias à metafísica, sem idealismo ou intangibilidade.

Perante estas Formas, a visão acontece sem tautologia, nas espessuras de uma teia de relações entre obra, espaço, corpo, que abre uma dobra, rasga a presença retiniana, e desprende a latência do invisível. Quando o espírito deposita no imaginário um excesso que não está, porém emana da obra, agora extensão do corpo, suplemento encarnado, carne sua.3 Ser-com estas Formas, habitar segundo um princípio de negatividade, é a dialética de desmontar o sensível, o pensamento, o eu que vê, e se vê, de erguer o sobredeterminado, recriação incessante.4

Miguel Ângelo Rocha é um experimentador da experiência, de fazer fazendo, explorando a interdisciplinaridade de materiais e técnicas e instigando a experiência do sempre impreciso, do encontrar procurando, dos ritmos diversos nos movimentos do olho e do corpo, do esvaziar e do resolver do consciente.

Isabel Madureira Andrade trabalha o desenho e a pintura com recurso a uma matriz que encontra ou produz, subjacência com que sonda o aflorar da imagem num gesto indexante próximo da frottage, confrontando a possibilidade do controlo e a imprevisibilidade plástica dos materiais.

Russell Floersch explora a tensão entre memória e esquecimento, numa prática experimental de construção e pintura de modelos escultóricos referentes a um lugar e um estender do seu tempo, e insinua narrativas, gera o arbitrário na ocultação através da tinta, da visualidade de uma ausência.

Pinturas, esculturas, construções, objetos. Potência e dinâmica, olho e mão. Espasmos em expansão e contração, intuição e decisão. Propõem-se sem ilusão ou representação, sem autonomia ou especificidade. São o cair no rasgão aberto, rendição ao incidente. Delírio sem ficção.

A questão não é o que acontece; é, antes, algo acontece. Um espanto. Abalo, choque, perturbação. Um indeterminável. Indizível, inexpressável, inapresentável. Elevação ao limiar em que colidem e convivem a angústia, privação de qualquer retórica e poética referentes ao que acontece, e a volúpia, alívio de algum porvir incerto e ambíguo, fulgor das possibilidades de significação, reconhecível só no acontecimento.5

O algo acontece é performance, happening. Fenómeno do corpo em ação, perturbação semântica sem ensaio nem guião; o irrepetível6 — fatal paradoxo do in-atual. Contingente e precário, um agora enquanto êxtase temporal. É dis-cronia, anacronismo do contemporâneo extemporâneo, descompasso do já-ainda não.7 É constelação de agoras em reconfiguração permanente. Tempo tão «demasiado originário» quão «demasiado novo», o inatual trava um combate com o devir linear do tempo.8 O heterocrónico constrói um contra-espaço, espelho opaco. Um fora-do-espaço, existente e localizável no exterior, porém que o neutraliza e recria, uma heterotopia de espectros visíveis.9

Ser-com em algum, em qualquer, tempo e lugar; uma certa deficiência na aderência do olho à luz exterior — uma cosmogénese, elenco de alteridades, de simultaneidades e promiscuidades. Limiar do entre, O ruído dos sonhos é a fina membrana onde acontece a cisão do sensível e do ser.

Ricardo Escarduça

1 Expressão adaptada do termo enunciado por Martin Heidegger, Ser e Tempo (trad. Márcia Schuback), Editora Vozes (2015).
2 Platão, The Republic, VII, 515b 3–13, 517b 2–3, 518c 5–8 (trad. Tom Griffith), The Press Syndicate of the University of Cambridge (2003).
3 Maurice Merleau-Ponty, O olho e o espírito (trad. Luís Manuel Bernardo), Nova Vega (2018).
4 Georges Didi-Huberman, Diante do tempo, história da arte e anacronismo das imagens (trad. Luís Lima), Orfeu Negro (2017).
5 Jean-François Lyotard, «The sublime and the avant-guarde», em Documents of contemporary art, Whitechapel Gallery e The MIT Press (2010).
6 Allan Kaprow, How to make a happening (1966), vinil 12 polegadas, © 2022 Estate of Allan Kaprow. Consultado em: www.primaryinformation.org/files/allan-kaprow-how-to-make-a-happening.pdf
7 Giorgio Agamben, «What is the contemporary?», em What is an apparatus?, and other essays (trads. David Kishik e Stefan Pedatella), Stanford University Press (2009).
8 Georges Didi-Huberman, Diante do tempo, história da arte e anacronismo das imagens (trad. Luís Lima), Orfeu Negro (2017).
9 Michel Foucault, «Of other spaces: utopias and heterotopias», em The Visual Culture Reader, Routledge, Taylor and Francis Group (1998).

Artistas

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Isabel Madureira Andrade

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© Jorge das Neves

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Terça a sábado 14h00 às 18h00

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Agradecimentos

Carlos Bessa Pereira Estate of Daniel M. Levine, NY Fátima Mota Galerie oqbo, Berlin Hastings Collage, NE John Robertshaw Rui Brito Sculpture Space, Long Island City, NY Sofia Costa Freire Patricia Zarate & Lynn Truncale Wendy Wylegala 57W57Arts, NY

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Mais informações

Ficha técnica

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Organização
Círculo de Artes Plásticas de Coimbra

Produção
Daniel Madeira

Montagem
Jorge das Neves
Marco Graça

Fotografia
Jorge das Neves

Texto
Ricardo Escarduça

Revisão
Carina Correia

Tradução
José Roseira

Direção de Arte
João Bicker
Joana Monteiro

Design Gráfico
Alexandra Oliveira

Programa educativo
Jorge Cabrera

Apoio à Comunicação
Alexandra Oliveira

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