Às vezes certas tardes uma cara
Olha-nos do mais fundo dum espelho;
A arte deve ser como esse espelho
Que nos revela a nossa própria cara.
Jorge Luís Borges, «Arte Poética», em Poemas Escolhidos, Dom Quixote (1985)
Perante um recipiente com água e uma vara imersa, Ptolomeu ou Descartes e outros sábios do olho são assaltados pela estranheza que aí se dá ao sensível. Imóveis num-fora-dela, pensam-na, cristalizada num artificialismo discursivo. Porém, não se lançam num qualquer interior. Não habitam. Na dúvida, não são-com-ela-no-mundo1, envoltos num estremecimento e assombro.
Em questão, está o mistério da visão, a imponderável dialética do visível. Curiosidade sem dúvida, modo de ver despertado pela exposição O ruído dos sonhos, dando ao sensível, tal como o dá a dissemelhança de coisas no mundo, a diversidade de obras de Miguel Ângelo Rocha, Isabel Madureira Andrade e Russell Floersch.
Diz Sócrates: o olho arrasta o corpo na fuga da caverna, a masmorra da visão onde as sombras e os ecos são carcereiros, em direção à luz que dá a ver Formas imateriais e imutáveis.2 Entretanto, omite a visão que acontece no movimento do corpo. O ruído dos sonhos é uma manifestação de Formas, porém alheias à metafísica, sem idealismo ou intangibilidade.
Perante estas Formas, a visão acontece sem tautologia, nas espessuras de uma teia de relações entre obra, espaço, corpo, que abre uma dobra, rasga a presença retiniana, e desprende a latência do invisível. Quando o espírito deposita no imaginário um excesso que não está, porém emana da obra, agora extensão do corpo, suplemento encarnado, carne sua.3 Ser-com estas Formas, habitar segundo um princípio de negatividade, é a dialética de desmontar o sensível, o pensamento, o eu que vê, e se vê, de erguer o sobredeterminado, recriação incessante.4
Miguel Ângelo Rocha é um experimentador da experiência, de fazer fazendo, explorando a interdisciplinaridade de materiais e técnicas e instigando a experiência do sempre impreciso, do encontrar procurando, dos ritmos diversos nos movimentos do olho e do corpo, do esvaziar e do resolver do consciente.
Isabel Madureira Andrade trabalha o desenho e a pintura com recurso a uma matriz que encontra ou produz, subjacência com que sonda o aflorar da imagem num gesto indexante próximo da frottage, confrontando a possibilidade do controlo e a imprevisibilidade plástica dos materiais.
Russell Floersch explora a tensão entre memória e esquecimento, numa prática experimental de construção e pintura de modelos escultóricos referentes a um lugar e um estender do seu tempo, e insinua narrativas, gera o arbitrário na ocultação através da tinta, da visualidade de uma ausência.
Pinturas, esculturas, construções, objetos. Potência e dinâmica, olho e mão. Espasmos em expansão e contração, intuição e decisão. Propõem-se sem ilusão ou representação, sem autonomia ou especificidade. São o cair no rasgão aberto, rendição ao incidente. Delírio sem ficção.
A questão não é o que acontece; é, antes, algo acontece. Um espanto. Abalo, choque, perturbação. Um indeterminável. Indizível, inexpressável, inapresentável. Elevação ao limiar em que colidem e convivem a angústia, privação de qualquer retórica e poética referentes ao que acontece, e a volúpia, alívio de algum porvir incerto e ambíguo, fulgor das possibilidades de significação, reconhecível só no acontecimento.5
O algo acontece é performance, happening. Fenómeno do corpo em ação, perturbação semântica sem ensaio nem guião; o irrepetível6 — fatal paradoxo do in-atual. Contingente e precário, um agora enquanto êxtase temporal. É dis-cronia, anacronismo do contemporâneo extemporâneo, descompasso do já-ainda não.7 É constelação de agoras em reconfiguração permanente. Tempo tão «demasiado originário» quão «demasiado novo», o inatual trava um combate com o devir linear do tempo.8 O heterocrónico constrói um contra-espaço, espelho opaco. Um fora-do-espaço, existente e localizável no exterior, porém que o neutraliza e recria, uma heterotopia de espectros visíveis.9
Ser-com em algum, em qualquer, tempo e lugar; uma certa deficiência na aderência do olho à luz exterior — uma cosmogénese, elenco de alteridades, de simultaneidades e promiscuidades. Limiar do entre, O ruído dos sonhos é a fina membrana onde acontece a cisão do sensível e do ser.
Ricardo Escarduça
Às vezes certas tardes uma cara
Olha-nos do mais fundo dum espelho;
A arte deve ser como esse espelho
Que nos revela a nossa própria cara.
Jorge Luís Borges, «Arte Poética», em Poemas Escolhidos, Dom Quixote (1985)
Perante um recipiente com água e uma vara imersa, Ptolomeu ou Descartes e outros sábios do olho são assaltados pela estranheza que aí se dá ao sensível. Imóveis num-fora-dela, pensam-na, cristalizada num artificialismo discursivo. Porém, não se lançam num qualquer interior. Não habitam. Na dúvida, não são-com-ela-no-mundo1, envoltos num estremecimento e assombro.
Em questão, está o mistério da visão, a imponderável dialética do visível. Curiosidade sem dúvida, modo de ver despertado pela exposição O ruído dos sonhos, dando ao sensível, tal como o dá a dissemelhança de coisas no mundo, a diversidade de obras de Miguel Ângelo Rocha, Isabel Madureira Andrade e Russell Floersch.
Diz Sócrates: o olho arrasta o corpo na fuga da caverna, a masmorra da visão onde as sombras e os ecos são carcereiros, em direção à luz que dá a ver Formas imateriais e imutáveis.2 Entretanto, omite a visão que acontece no movimento do corpo. O ruído dos sonhos é uma manifestação de Formas, porém alheias à metafísica, sem idealismo ou intangibilidade.
Perante estas Formas, a visão acontece sem tautologia, nas espessuras de uma teia de relações entre obra, espaço, corpo, que abre uma dobra, rasga a presença retiniana, e desprende a latência do invisível. Quando o espírito deposita no imaginário um excesso que não está, porém emana da obra, agora extensão do corpo, suplemento encarnado, carne sua.3 Ser-com estas Formas, habitar segundo um princípio de negatividade, é a dialética de desmontar o sensível, o pensamento, o eu que vê, e se vê, de erguer o sobredeterminado, recriação incessante.4
Miguel Ângelo Rocha é um experimentador da experiência, de fazer fazendo, explorando a interdisciplinaridade de materiais e técnicas e instigando a experiência do sempre impreciso, do encontrar procurando, dos ritmos diversos nos movimentos do olho e do corpo, do esvaziar e do resolver do consciente.
Isabel Madureira Andrade trabalha o desenho e a pintura com recurso a uma matriz que encontra ou produz, subjacência com que sonda o aflorar da imagem num gesto indexante próximo da frottage, confrontando a possibilidade do controlo e a imprevisibilidade plástica dos materiais.
Russell Floersch explora a tensão entre memória e esquecimento, numa prática experimental de construção e pintura de modelos escultóricos referentes a um lugar e um estender do seu tempo, e insinua narrativas, gera o arbitrário na ocultação através da tinta, da visualidade de uma ausência.
Pinturas, esculturas, construções, objetos. Potência e dinâmica, olho e mão. Espasmos em expansão e contração, intuição e decisão. Propõem-se sem ilusão ou representação, sem autonomia ou especificidade. São o cair no rasgão aberto, rendição ao incidente. Delírio sem ficção.
A questão não é o que acontece; é, antes, algo acontece. Um espanto. Abalo, choque, perturbação. Um indeterminável. Indizível, inexpressável, inapresentável. Elevação ao limiar em que colidem e convivem a angústia, privação de qualquer retórica e poética referentes ao que acontece, e a volúpia, alívio de algum porvir incerto e ambíguo, fulgor das possibilidades de significação, reconhecível só no acontecimento.5
O algo acontece é performance, happening. Fenómeno do corpo em ação, perturbação semântica sem ensaio nem guião; o irrepetível6 — fatal paradoxo do in-atual. Contingente e precário, um agora enquanto êxtase temporal. É dis-cronia, anacronismo do contemporâneo extemporâneo, descompasso do já-ainda não.7 É constelação de agoras em reconfiguração permanente. Tempo tão «demasiado originário» quão «demasiado novo», o inatual trava um combate com o devir linear do tempo.8 O heterocrónico constrói um contra-espaço, espelho opaco. Um fora-do-espaço, existente e localizável no exterior, porém que o neutraliza e recria, uma heterotopia de espectros visíveis.9
Ser-com em algum, em qualquer, tempo e lugar; uma certa deficiência na aderência do olho à luz exterior — uma cosmogénese, elenco de alteridades, de simultaneidades e promiscuidades. Limiar do entre, O ruído dos sonhos é a fina membrana onde acontece a cisão do sensível e do ser.
Ricardo Escarduça
Organização
Círculo de Artes Plásticas de Coimbra
Produção
Daniel Madeira
Montagem
Jorge das Neves
Marco Graça
Fotografia
Jorge das Neves
Texto
Ricardo Escarduça
Revisão
Carina Correia
Tradução
José Roseira
Direção de Arte
João Bicker
Joana Monteiro
Design Gráfico
Alexandra Oliveira
Programa educativo
Jorge Cabrera
Apoio à Comunicação
Alexandra Oliveira