Inflammatio, que no Latim procura enunciar o atear do fogo, designa também a inflamação (ou o processo inflamatório) como sendo a reação de um organismo perante uma lesão dos seus tecidos — estádio descrito por Aulo Cornélio Celso na Roma Antiga, cerca de 50 a.C.
Inflamáveis eram também as insulae [Insulae] — espaços gregários, residências onde se albergavam os menos abonados na Velha Roma — que, ao contrário das domus, rapidamente se incendiavam, levando, também por isso, Nero — num estádio de temperamento inflamado — a querer ver Roma a arder.
Passadas estas autofagias [autofA(l)gias _Gelo Real Vestígios], revelam-se novas consciências do corpo quando este se exorciza perante o que em natura, em florigen [Florigen], se espelha. Tudo para lá do que em oração no fogo se exorciza [Oratória] e apela [Dá-me a mão, não as luvas].
Mas há um secreto caminhar na montanha [A(l)titude] e, ainda, um diálogo escuro pela noite dentro na busca do sentido. Essa necessária fome de inventar deus [Samovar sobre pedras].
Há algo na ausência de cor na obra de António Barros que inquieta. Um luto e uma morte que logo se transfiguram em luta e amor. Preto branco de onde emana a luz: obra iluminada pelo poder criador da poesia, iluminando a perceção de quem a toca com o olhar. Um olhar logo transfigurado pela catarse, uma libertação operada pelo fogo: uma purificação pela combustão, uma penitência. Inquietação acentuada pela ausência de um espaço com sentido, antes criando espaço para a criação de sentido(s). Obra, projeto de obra sem moldura: em rotura consciente com o espaço normativo, situada (e sitiada) pelo envolvimento. Obra antifascinante, antitecnológica, em rodopio, promovendo o desbloqueamento da consciência, do que da consciência — das estruturas aprendidas da perceção — nasce. Obra contra a ausência de sentido, contra a banalização do sentido. Obra que inflama.
Há algo no título desta exposição que desassossega. Inflammatio: uma salvação pela chama do fogo, uma transfiguração do olhar inflamado. Já avisava José Tolentino Mendonça a propósito da exposição ‘Alvoro’ no MUDAS: «Coisa misteriosa é um título e misteriosa também a relação que ele estabelece com a obra». Aqui, o mistério adensa-se: inflamação, o que ateia o fogo; inflamação, o modo como o corpo reage à lesão. E o fogo que se ignita nesses lugares-ilha (nesses espaços sem moldura) são gestualizados nesta obra. Porta aberta para um diálogo que apela à abertura, à comunicação com o outro: o progesto. Inflamam-se os espaços vivenciados, acendem-se as memórias identitárias coletivas. Há algo na obra de António Barros que desassossega: uma febre, um acender da chama, a iluminação. Obra que germina.
Inquietação, desassossego. Uma febre e um fogo que inscrevem a inteligência teórica do autor, operações estéticas que excedem o visualismo poético, que ultrapassam a instalação performativa, que transpõem a arte em espaço público. Como entender estes espaços-ilha onde os públicos se isolam? Como entender? Obra pronta para a resposta: como jogo de sombras, os barroquismos controlados de António Barros são enigmas, e em relação a essas tensões devem ser observados. O seu ofício é a geração de contaminações, religando o corpo e a natureza, exsudando as inflamações. Um «inventário da dor», que «exibe e esconde» ao mesmo tempo, como também refere Tolentino Mendonça. Luto e amor, luta e morte. Obra que questiona: desassossego e inquietação.
Veja-se o catálogo (a ordenação: como se as coisas tivessem uma ordem interna…, como se as coisas pudessem ser ordenadas…). Catálogo de esboços, esquissos, obra em tentativa (em experiência), procurando o sentido no adiamento do sentido. O esboço tenta a forma, é semente que antecipa o seu fruto. Documentada em preto branco, o esquisso desta obra perturba: catálogo sem cor, catálogo sem fotografias, ícone puro anterior à singularidade. Obras elas mesmas em esquisso, forma em potencial, qualidade pura. Poemas improvisados (esquisso tem origem etimológica em schedius, forma antiga de poesia improvisada…), performance (no seu sentido mais genuíno de desempenho, único e irrepetível, presente): força viva interior nunca ordenada. Obra Viva. Ou ainda: obra vivificada pela chama e pela inflamação. Esquissos (improvisos) de um projeto em ação. Assim, um catálogo para olhar, um catálogo do olhar, um catálogo de uma obra para o olhar.
Obra ainda que promove a revisitação, a transfiguração do passado, o luto e o seu devir, a primavera. António Barros sempre aproveita as ex_posições para se transformar, para transformar o que expôs. Sem dimensão cronológica, sem ordenação antológica. Obra gestualizada pela alquimia (pela transfiguração), a pedra que espera dar flor. Leve pó que sustenta a comunicação do que é efémero, do que existe em transição. Como borboletas em círculos, crisálidas sonhando a ressurreição. Como falena, consumida pelo amor, viajando à volta da chama do fogo, queimando as asas em círculos. Cinza que é síntese de comunicação. E num mundo em que a comunicação aparece saturada, suturada, excessiva, uma obra que é demanda pela insularidade, pelo distanciamento necessário. Um regresso à natureza, uma arte revelada entre o ícone e o símbolo, entre o possível e o canónico, entre a errância e o enraizamento, como entendeu Isabel Santa Clara. Uma obra entre, feita de passagens, de trocas, de meta_morfoses: uma febre entusiasmada. Obra provisória, em esquisso, revisitada: inquieta, questionando.
Estas navegações, estes trânsitos, sinalizam uma viagem «para o interior da condição de si», uma viagem «para o infinito de si», uma viagem interior «à procura da vacuidade», como explica o autor. O interior é aquilo que não se nomeia: «o que se esconde mostrando-se». O mole aqui não tem lugar, porque o que vemos não é real: antes sustenta a «moldura da moldura». Obra que procura. Por isso, o fogo desta arte é também o fogo intemporal de Prometeu, é poesis, semente de fogo, desejo da palavra criadora, manifestando-se no logos, na razão e na inteligência. Fogo que se torna placenta, essa água primordial, viagem de regresso às origens. Obra que restabelece: e o que interessa é começar a viagem, estar em trânsito.
Mas como dialogar, quando imersos no silêncio? Como encontrar pontes na viagem libertadora? Como enunciar as portas, as passagens entre estados, entre mundos? Esta obra questiona, mas também responde: nesta viagem, do conhecido ao desconhecido, da luz às trevas, uma porta se abre, uma porta que nos abre para um novo mistério. O mistério do olhar, a inflamação do olhar. O olhar petrificado de Perseu, protegido por um escudo polido, tornado espelho, decapitando a medusa, imobilizada pela sua própria imagem. Tudo nos vem pelos olhos: o milagre, a pedra viva, a obra. Luto, aqui, sem castigo, sem o castigo do descomedimento humano. Como dialogar no silêncio?
Há na obra de António Barros um aparente paradoxo que nos inflama: uma arte como educação (a obra que inForma), ao mesmo tempo situada na contrainterpretação, contra a resignação da sensibilidade. A sua dificuldade é um desafio, compelindo-nos a um novo começo. Sempre começar. Como o que é líquido e aquoso, transitório. Obra em busca da natureza, obra em trânsito germinando em comunicação. O fogo também exorciza, e nesta obra ele é febre e delírio: o olhar delira, o olhar não vê, o olhar imagina. Em relação comprometida com o seu leitor, torna-se lente, ampliando o conceito, arte sublime. Contemplação e encantamento: a arte procurando superar-se. Comunhão, magia.
Rui Torres
Julho de 2018
Inflammatio, que no Latim procura enunciar o atear do fogo, designa também a inflamação (ou o processo inflamatório) como sendo a reação de um organismo perante uma lesão dos seus tecidos — estádio descrito por Aulo Cornélio Celso na Roma Antiga, cerca de 50 a.C.
Inflamáveis eram também as insulae [Insulae] — espaços gregários, residências onde se albergavam os menos abonados na Velha Roma — que, ao contrário das domus, rapidamente se incendiavam, levando, também por isso, Nero — num estádio de temperamento inflamado — a querer ver Roma a arder.
Passadas estas autofagias [autofA(l)gias _Gelo Real Vestígios], revelam-se novas consciências do corpo quando este se exorciza perante o que em natura, em florigen [Florigen], se espelha. Tudo para lá do que em oração no fogo se exorciza [Oratória] e apela [Dá-me a mão, não as luvas].
Mas há um secreto caminhar na montanha [A(l)titude] e, ainda, um diálogo escuro pela noite dentro na busca do sentido. Essa necessária fome de inventar deus [Samovar sobre pedras].
Há algo na ausência de cor na obra de António Barros que inquieta. Um luto e uma morte que logo se transfiguram em luta e amor. Preto branco de onde emana a luz: obra iluminada pelo poder criador da poesia, iluminando a perceção de quem a toca com o olhar. Um olhar logo transfigurado pela catarse, uma libertação operada pelo fogo: uma purificação pela combustão, uma penitência. Inquietação acentuada pela ausência de um espaço com sentido, antes criando espaço para a criação de sentido(s). Obra, projeto de obra sem moldura: em rotura consciente com o espaço normativo, situada (e sitiada) pelo envolvimento. Obra antifascinante, antitecnológica, em rodopio, promovendo o desbloqueamento da consciência, do que da consciência — das estruturas aprendidas da perceção — nasce. Obra contra a ausência de sentido, contra a banalização do sentido. Obra que inflama.
Há algo no título desta exposição que desassossega. Inflammatio: uma salvação pela chama do fogo, uma transfiguração do olhar inflamado. Já avisava José Tolentino Mendonça a propósito da exposição ‘Alvoro’ no MUDAS: «Coisa misteriosa é um título e misteriosa também a relação que ele estabelece com a obra». Aqui, o mistério adensa-se: inflamação, o que ateia o fogo; inflamação, o modo como o corpo reage à lesão. E o fogo que se ignita nesses lugares-ilha (nesses espaços sem moldura) são gestualizados nesta obra. Porta aberta para um diálogo que apela à abertura, à comunicação com o outro: o progesto. Inflamam-se os espaços vivenciados, acendem-se as memórias identitárias coletivas. Há algo na obra de António Barros que desassossega: uma febre, um acender da chama, a iluminação. Obra que germina.
Inquietação, desassossego. Uma febre e um fogo que inscrevem a inteligência teórica do autor, operações estéticas que excedem o visualismo poético, que ultrapassam a instalação performativa, que transpõem a arte em espaço público. Como entender estes espaços-ilha onde os públicos se isolam? Como entender? Obra pronta para a resposta: como jogo de sombras, os barroquismos controlados de António Barros são enigmas, e em relação a essas tensões devem ser observados. O seu ofício é a geração de contaminações, religando o corpo e a natureza, exsudando as inflamações. Um «inventário da dor», que «exibe e esconde» ao mesmo tempo, como também refere Tolentino Mendonça. Luto e amor, luta e morte. Obra que questiona: desassossego e inquietação.
Veja-se o catálogo (a ordenação: como se as coisas tivessem uma ordem interna…, como se as coisas pudessem ser ordenadas…). Catálogo de esboços, esquissos, obra em tentativa (em experiência), procurando o sentido no adiamento do sentido. O esboço tenta a forma, é semente que antecipa o seu fruto. Documentada em preto branco, o esquisso desta obra perturba: catálogo sem cor, catálogo sem fotografias, ícone puro anterior à singularidade. Obras elas mesmas em esquisso, forma em potencial, qualidade pura. Poemas improvisados (esquisso tem origem etimológica em schedius, forma antiga de poesia improvisada…), performance (no seu sentido mais genuíno de desempenho, único e irrepetível, presente): força viva interior nunca ordenada. Obra Viva. Ou ainda: obra vivificada pela chama e pela inflamação. Esquissos (improvisos) de um projeto em ação. Assim, um catálogo para olhar, um catálogo do olhar, um catálogo de uma obra para o olhar.
Obra ainda que promove a revisitação, a transfiguração do passado, o luto e o seu devir, a primavera. António Barros sempre aproveita as ex_posições para se transformar, para transformar o que expôs. Sem dimensão cronológica, sem ordenação antológica. Obra gestualizada pela alquimia (pela transfiguração), a pedra que espera dar flor. Leve pó que sustenta a comunicação do que é efémero, do que existe em transição. Como borboletas em círculos, crisálidas sonhando a ressurreição. Como falena, consumida pelo amor, viajando à volta da chama do fogo, queimando as asas em círculos. Cinza que é síntese de comunicação. E num mundo em que a comunicação aparece saturada, suturada, excessiva, uma obra que é demanda pela insularidade, pelo distanciamento necessário. Um regresso à natureza, uma arte revelada entre o ícone e o símbolo, entre o possível e o canónico, entre a errância e o enraizamento, como entendeu Isabel Santa Clara. Uma obra entre, feita de passagens, de trocas, de meta_morfoses: uma febre entusiasmada. Obra provisória, em esquisso, revisitada: inquieta, questionando.
Estas navegações, estes trânsitos, sinalizam uma viagem «para o interior da condição de si», uma viagem «para o infinito de si», uma viagem interior «à procura da vacuidade», como explica o autor. O interior é aquilo que não se nomeia: «o que se esconde mostrando-se». O mole aqui não tem lugar, porque o que vemos não é real: antes sustenta a «moldura da moldura». Obra que procura. Por isso, o fogo desta arte é também o fogo intemporal de Prometeu, é poesis, semente de fogo, desejo da palavra criadora, manifestando-se no logos, na razão e na inteligência. Fogo que se torna placenta, essa água primordial, viagem de regresso às origens. Obra que restabelece: e o que interessa é começar a viagem, estar em trânsito.
Mas como dialogar, quando imersos no silêncio? Como encontrar pontes na viagem libertadora? Como enunciar as portas, as passagens entre estados, entre mundos? Esta obra questiona, mas também responde: nesta viagem, do conhecido ao desconhecido, da luz às trevas, uma porta se abre, uma porta que nos abre para um novo mistério. O mistério do olhar, a inflamação do olhar. O olhar petrificado de Perseu, protegido por um escudo polido, tornado espelho, decapitando a medusa, imobilizada pela sua própria imagem. Tudo nos vem pelos olhos: o milagre, a pedra viva, a obra. Luto, aqui, sem castigo, sem o castigo do descomedimento humano. Como dialogar no silêncio?
Há na obra de António Barros um aparente paradoxo que nos inflama: uma arte como educação (a obra que inForma), ao mesmo tempo situada na contrainterpretação, contra a resignação da sensibilidade. A sua dificuldade é um desafio, compelindo-nos a um novo começo. Sempre começar. Como o que é líquido e aquoso, transitório. Obra em busca da natureza, obra em trânsito germinando em comunicação. O fogo também exorciza, e nesta obra ele é febre e delírio: o olhar delira, o olhar não vê, o olhar imagina. Em relação comprometida com o seu leitor, torna-se lente, ampliando o conceito, arte sublime. Contemplação e encantamento: a arte procurando superar-se. Comunhão, magia.
Rui Torres
Julho de 2018
Organização
Círculo de Artes Plásticas de Coimbra
Produção
Ana Sousa
Catarina Bota Leal
Assistência à produção
Jorge das Neves
Ivone Antunes
Montagem
Jorge das Neves
Fotografia
Jorge das Neves
Texto
Rui Torres
Revisão
Carina Correia
Tradução
Hugo Carriço (Estagiário FLUC)
Design Gráfico
Joana Monteiro