Na exposição Fermata (do italiano de parada), que também se refere à suspensão na notação musical, João Ferro Martins apresenta um conjunto de obras de 2019 feitas a partir de conceitos como pausa, espera, respiração, silêncio, invariabilidade. Palavras ligadas à música, mas que também se aplicam quando falamos de ciclos ou de rotina. A constante necessidade de tempo que não controlamos e a soberania cíclica dos dias e das tarefas parecem suspender-nos letargicamente criando assim um contrassenso, como objetos disfuncionais ou cuja função foi deslocada.
Pausa, suspensão,
transe
e
outras mortes
«And so on. (Pause.) Be again, be again. (Pause.) All that old misery.
(Pause.) One wasn’t enough for you. (Pause.) Lie down across her.»
Samuel Beckett, Krapp’s Last Tape (1958)
A exposição Fermata apresenta uma série de novas obras do artista João Ferro Martins no Círculo de Artes Plásticas de Coimbra. O título, que tem origem no termo fermare (parar, pausar, aguentar), remete para o símbolo de notação musical usado para indicar que o som deverá ser prolongado ou estendido para lá da duração normal do valor da nota. Sendo por vezes também utilizado para indicar o final de uma frase, secção da obra e, em concerto, para determinar o ponto de uma candência.
Fermata, além de ser um nome singular, à priori mais contido na evocação, tem um significado que nos oferece dois movimentos em simultâneo — o acto de parar e o de prolongar. Nesta operação, acontecem dois tipos de pausa, muito usados na maioria das obras do artista: pausa do objecto (aparentemente estático, mas que reverbera se o olharmos com atenção) e o prolongamento dessa pausa no olhar do espectador. Isto porque no seu trabalho é habitual o sublinhar-se da paragem, por uma necessidade prática ou temporária de cristalização da obra, antecedida e precedida por uma reflexão sobre a existência corporal num tempo (do ser e da obra do ser e do ser que vê a obra and so on). E se uma pausa pode ter a mesma duração de um prolongamento, podendo isto ser verdade tanto na música (tempo), como na matéria (espaço), o prolongamento em si é uma forma de pausa com movimento. A escolha deste título sublinha isso mesmo, estabelecendo uma grande premissa agregadora para a exposição. Celebra também a essência da escultura no geral como ferramenta ontológica e a morte temporária do objecto para a criação de novos significados.
Outras vezes, no passado, João Ferro Martins (JFM) recorreu à língua de Dante para a concepção do título, como e por exemplo na sua anterior exposição individual — Sottile sfumatura di rumore — na 3+1 Arte Contemporânea, em Lisboa (2017). Neste caso, a exposição foi composta por peças que funcionavam como um conjunto de cenários e apparatus usados posteriormente para a rodagem de um filme. E o título em italiano foi usado para evocação poética de algo intangível — o desconhecer a amplitude e reverberação de uma imagem por captar, ainda que os intervenientes (artista, guião, objectos, esculturas, maquinaria, som, espaço, figurinos, não-actores, extras, etc.) fossem fixos e planeados. A instalação escultórica e o filme compreendiam no seu todo a obra. Ainda que pareça pertencer a um universo conceptual díspar, esta anterior exposição tem um constituinte semelhante a esta nova Fermata — a obsessão contida na Pausa.
No caso da exposição Sottile sfumatura di rumore, a pausa acontece entre o processo que desemboca na finalização do «cenário» e a «rodagem». O filme em si funciona como um prolongamento e desenvolvimento dessas condições finais. Já no caso de Fermata, toda a construção e preparação é feita em prol da pausa. O possível prolongamento estático opera-se no objecto e no espectador. O discurso assenta nessa pausa, independentemente do conteúdo e forma da obra, sempre urgente. Podemos aqui falar de uma escultura da pausa que nos confronta.
Começámos com uma epígrafe de Samuel Beckett, um extracto de Krapp’s Last Tape que exemplifica como as pausas (neste caso, usadas como indicações para o leitor ou actor) criam a tensão necessária para suster e sublinhar a importância do que é dito na argamassa poética e rítmica da linguagem (coisa que o autor irlandês melhor do que ninguém [e depois, Harold Pinter] soube cristalizar). Em 2017, não é coincidência, JFM fez uma instalação sonora (para circuito interno de som em salas de Teatro, e neste caso no Teatro Nacional D. Maria II) com o título Intervalo, a partir de Kaspar, de Peter Handke, com Joana Guerra e Alexandre Pieroni Calado. A pausa no seu trabalho escultórico e instalativo foi e continua a buscar muitas influências a conceitos de presença e noções de pausa perfomática, que informam e determinam as dinâmicas internas de peças de teatro, dança e música. JFM, embora tenha o seu centro de produção nas artes plásticas, faz circular os seus saberes entre as artes do palco, composição sonora, fotografia, tendo uma noção das limitações e potencialidades de cada prática, aplicando metodologias de umas artes nas outras, operando de forma coerente no campo alargado da multidisciplinaridade (que em 2019, ainda por vezes é assimilada com estranheza por parte do público conservador). As obras presentes nesta exposição são fruto desse compromisso com a liberdade, materializados de forma urgente e inequívoca em escultura.
Bruno Humberto, Casablanca, 2019
O autor não segue o Acordo Ortográfico em vigor.
Na exposição Fermata (do italiano de parada), que também se refere à suspensão na notação musical, João Ferro Martins apresenta um conjunto de obras de 2019 feitas a partir de conceitos como pausa, espera, respiração, silêncio, invariabilidade. Palavras ligadas à música, mas que também se aplicam quando falamos de ciclos ou de rotina. A constante necessidade de tempo que não controlamos e a soberania cíclica dos dias e das tarefas parecem suspender-nos letargicamente criando assim um contrassenso, como objetos disfuncionais ou cuja função foi deslocada.
Pausa, suspensão,
transe
e
outras mortes
«And so on. (Pause.) Be again, be again. (Pause.) All that old misery.
(Pause.) One wasn’t enough for you. (Pause.) Lie down across her.»
Samuel Beckett, Krapp’s Last Tape (1958)
A exposição Fermata apresenta uma série de novas obras do artista João Ferro Martins no Círculo de Artes Plásticas de Coimbra. O título, que tem origem no termo fermare (parar, pausar, aguentar), remete para o símbolo de notação musical usado para indicar que o som deverá ser prolongado ou estendido para lá da duração normal do valor da nota. Sendo por vezes também utilizado para indicar o final de uma frase, secção da obra e, em concerto, para determinar o ponto de uma candência.
Fermata, além de ser um nome singular, à priori mais contido na evocação, tem um significado que nos oferece dois movimentos em simultâneo — o acto de parar e o de prolongar. Nesta operação, acontecem dois tipos de pausa, muito usados na maioria das obras do artista: pausa do objecto (aparentemente estático, mas que reverbera se o olharmos com atenção) e o prolongamento dessa pausa no olhar do espectador. Isto porque no seu trabalho é habitual o sublinhar-se da paragem, por uma necessidade prática ou temporária de cristalização da obra, antecedida e precedida por uma reflexão sobre a existência corporal num tempo (do ser e da obra do ser e do ser que vê a obra and so on). E se uma pausa pode ter a mesma duração de um prolongamento, podendo isto ser verdade tanto na música (tempo), como na matéria (espaço), o prolongamento em si é uma forma de pausa com movimento. A escolha deste título sublinha isso mesmo, estabelecendo uma grande premissa agregadora para a exposição. Celebra também a essência da escultura no geral como ferramenta ontológica e a morte temporária do objecto para a criação de novos significados.
Outras vezes, no passado, João Ferro Martins (JFM) recorreu à língua de Dante para a concepção do título, como e por exemplo na sua anterior exposição individual — Sottile sfumatura di rumore — na 3+1 Arte Contemporânea, em Lisboa (2017). Neste caso, a exposição foi composta por peças que funcionavam como um conjunto de cenários e apparatus usados posteriormente para a rodagem de um filme. E o título em italiano foi usado para evocação poética de algo intangível — o desconhecer a amplitude e reverberação de uma imagem por captar, ainda que os intervenientes (artista, guião, objectos, esculturas, maquinaria, som, espaço, figurinos, não-actores, extras, etc.) fossem fixos e planeados. A instalação escultórica e o filme compreendiam no seu todo a obra. Ainda que pareça pertencer a um universo conceptual díspar, esta anterior exposição tem um constituinte semelhante a esta nova Fermata — a obsessão contida na Pausa.
No caso da exposição Sottile sfumatura di rumore, a pausa acontece entre o processo que desemboca na finalização do «cenário» e a «rodagem». O filme em si funciona como um prolongamento e desenvolvimento dessas condições finais. Já no caso de Fermata, toda a construção e preparação é feita em prol da pausa. O possível prolongamento estático opera-se no objecto e no espectador. O discurso assenta nessa pausa, independentemente do conteúdo e forma da obra, sempre urgente. Podemos aqui falar de uma escultura da pausa que nos confronta.
Começámos com uma epígrafe de Samuel Beckett, um extracto de Krapp’s Last Tape que exemplifica como as pausas (neste caso, usadas como indicações para o leitor ou actor) criam a tensão necessária para suster e sublinhar a importância do que é dito na argamassa poética e rítmica da linguagem (coisa que o autor irlandês melhor do que ninguém [e depois, Harold Pinter] soube cristalizar). Em 2017, não é coincidência, JFM fez uma instalação sonora (para circuito interno de som em salas de Teatro, e neste caso no Teatro Nacional D. Maria II) com o título Intervalo, a partir de Kaspar, de Peter Handke, com Joana Guerra e Alexandre Pieroni Calado. A pausa no seu trabalho escultórico e instalativo foi e continua a buscar muitas influências a conceitos de presença e noções de pausa perfomática, que informam e determinam as dinâmicas internas de peças de teatro, dança e música. JFM, embora tenha o seu centro de produção nas artes plásticas, faz circular os seus saberes entre as artes do palco, composição sonora, fotografia, tendo uma noção das limitações e potencialidades de cada prática, aplicando metodologias de umas artes nas outras, operando de forma coerente no campo alargado da multidisciplinaridade (que em 2019, ainda por vezes é assimilada com estranheza por parte do público conservador). As obras presentes nesta exposição são fruto desse compromisso com a liberdade, materializados de forma urgente e inequívoca em escultura.
Bruno Humberto, Casablanca, 2019
O autor não segue o Acordo Ortográfico em vigor.
Organização
Círculo de Artes Plásticas de Coimbra
Produção
Ana Sousa
Catarina Bota Leal
Montagem
Jorge das Neves
Fotografia
Jorge das Neves
Texto
Bruno Humberto
Tradução
Hugo Carriço (Estagiário FLUC)
Revisão
Carina Correia
Direção de Arte
João Bicker
Design Gráfico
Joana Monteiro
Programa educativo
Joana Monteiro
Assessoria de imprensa
Isabel Campante (Ideias Concertadas)