A ideia de que o espaço nos pode fazer recordar algo que não chega a ser expressamente reconhecido liga-se à hipótese de que os fantasmas presos aos objetos podem segurar memórias que não se conciliam com o que desses objetos e dos seus usos sempre percebemos cognitivamente. Indica-se desse modo uma possibilidade teórica precisa: que a memória guardada pelos espaços humanos pode comportar dimensões que não acompanham as exigências da consciência e da articulação narrativa do tempo humano, por mergulharem mais profundamente no corpo pré-pessoal e assim tornarem impossível estabelecer uma clara racionalização do experienciado como passado, presente ou futuro.
Luís Umbelino, Memória do corpo, tentação do espaço, CAPC, 2015
A exposição Pinturas e esculturas pequenas de 2017 e ainda alguns desenhos de 2009, que agora se concretiza, cumpre um desejo de anos de realizar no Círculo de Artes Plásticas de Coimbra uma exposição de Patrícia Garrido. A circunstância excecional da mostra ocupar os dois espaços expositivos — o seu edifício sede na rua Castro Matoso, n.º 18 e o espaço no parque de Santa Cruz, Jardim da Sereia — explicita, sem reservas, a relevância desta exposição para o Círculo.
Ao longo dos últimos trinta anos, a artista tem gerido com evidente parcimónia a apresentação pública do seu trabalho, o que lhe tem permitido ter o controlo total da sua produção e ir construindo um corpo íntegro, embora de grande complexidade, multifacetado e plural. Alterna períodos de intensa produtividade com longas pausas, mergulhos em apneia, de extensão imprevisível, na sua esfera íntima e inacessível. São «momentos de crise», como os designa, de reflexão sobre o sentido do que produziu, embora continue sempre a preferir a intuição à erudição explícita. Esta recusa consciente de omnipresença nos territórios visíveis do circo mediático da arte permite-lhe salvaguardar-se da crise temporal na qual estamos todos tomados, «de um tempo atomizado, em que todos os momentos são iguais entre si», na aceção de Byung-Chul Han, sobrepondo a vida contemplativa à vida ativa.1 Cada reaparição pública da artista, cada nova exposição, é uma recorporização da sua própria obra, um renascimento, uma máscara fúnebre que reapresenta um corpo já distante e omnipresente, que é sempre a relação da artista com a sua obra — no sentido que Hans Belting define na sua antropologia das imagens — e é já, por isso, uma «corporização impura» que reclama o direito à sua autonomia e também a corporização de uma Ideia (idea) nova.2 O seu trabalho não é de resistência, de género, feminista, panfletário ou de denúncia, embora tenha uma subtil, poderosa e irónica dimensão política. Em obras como Jogos de Cama, de 1994, e especialmente a série O prazer é todo meu, do mesmo ano, armadilha o protocolo social do cumprimento reverencial e submisso, reclamando para si a totalidade do «Prazer». Demonstra uma plena consciência de um mundo dominado pelo paradigma masculino, caucasiano, heterossexual e poderoso política e financeiramente.
A ironia, melhor, a desmontagem dos protocolos e dos consensos — «do que é dado» — é a ferramenta que usa recorrentemente. Quer sejam protocolos de representação, de medida, de linguagem, de poder, de sexualidade, em suma, de significação. A memória oculta e distante dos espaços e dos objetos e a «experiência pré-pessoal» determinam a experiência reificada da obra. São assemblagens — condensações do espaço e, principalmente, condensações do tempo. A arquitetura, na sua dimensão espacial, temporal e de representação, volatiza-se em escultura, sublinhando a performatividade do espaço ou da casa como espaço dramatúrgico, alter ego do seu habitante.
Para esta exposição em que agora se apresenta, Patrícia Garrido decidiu um inesperado regresso à pintura — a sua disciplina de formação académica, cedo preterida pela fotografia, vídeo, escultura e instalação — realizando uma série de pinturas a óleo de pequena e média dimensão: são estranhas paisagens, espessas e crepusculares, «fora do tempo», como as assinala, que convocam e celebram o rigor oficinal da disciplina num alinhamento histórico sem reservas ou pudor. A pintura, sabemo-lo bem, é uma prática disciplinar de continuidade ao longo da sua história, desde a Idade Média e, principalmente, desde o Renascimento. Nenhuma outra disciplina artística resistiu aos apelos de outras práticas derivativas que as afastam de um possível momento matricial. A exposição integra também um conjunto de 14 esculturas de madeira e bronze, que corporizam os objetos de geometria irregular representados nas pinturas, e 35 desenhos inéditos de 2009. A circunstância de este regresso, em plena maturidade disciplinar da artista, ser materializado fazendo uso da pintura a óleo — técnica nunca antes utilizada por si — e escultura de bronze evidencia um novo renascimento, uma recorporização da sua própria obra, como antes referimos, e um «modo de fazer clássico, de voltar ao zero, ao princípio de tudo», como refere com precisão Helena de Freitas no ensaio escrito expressamente para esta exposição, e publicado no respetivo catálogo. Essas pinturas e, principalmente, essas esculturas são formas imperfeitas, seladas, esquifes de um corpo que nunca se revelará e que nunca entenderemos pelos caminhos da palavra. Representam uma qualquer estranheza, «coisas que ainda não sabem o que são (ou se vão ser), pluralidades de sentido em potência, analogias, figurações, divagações», como observa Pedro Pousada no outro ensaio que integra essa mesma publicação. Concluímos manifestando o nosso profundo agradecimento a Patrícia Garrido por se disponibilizar a produzir de raiz uma exposição tão vasta para o Círculo de Artes Plásticas de Coimbra. As 47 pinturas expostas resultam de uma seleção criteriosa da artista a partir de uma base de cerca de 100 obras produzidas para esta exposição. Foi um trabalho obstinado, totalmente concentrado, que pudemos ir acompanhando ao longo do último ano. É este o privilégio de quem priva com os artistas: poder ver em ateliê a progressão do seu trabalho, as suas dúvidas permanentes, as suas convicções inabaláveis, que podem durar uma vida, um ano, um dia ou um segundo.
Carlos Antunes, Corvo
Agosto de 2017
A ideia de que o espaço nos pode fazer recordar algo que não chega a ser expressamente reconhecido liga-se à hipótese de que os fantasmas presos aos objetos podem segurar memórias que não se conciliam com o que desses objetos e dos seus usos sempre percebemos cognitivamente. Indica-se desse modo uma possibilidade teórica precisa: que a memória guardada pelos espaços humanos pode comportar dimensões que não acompanham as exigências da consciência e da articulação narrativa do tempo humano, por mergulharem mais profundamente no corpo pré-pessoal e assim tornarem impossível estabelecer uma clara racionalização do experienciado como passado, presente ou futuro.
Luís Umbelino, Memória do corpo, tentação do espaço, CAPC, 2015
A exposição Pinturas e esculturas pequenas de 2017 e ainda alguns desenhos de 2009, que agora se concretiza, cumpre um desejo de anos de realizar no Círculo de Artes Plásticas de Coimbra uma exposição de Patrícia Garrido. A circunstância excecional da mostra ocupar os dois espaços expositivos — o seu edifício sede na rua Castro Matoso, n.º 18 e o espaço no parque de Santa Cruz, Jardim da Sereia — explicita, sem reservas, a relevância desta exposição para o Círculo.
Ao longo dos últimos trinta anos, a artista tem gerido com evidente parcimónia a apresentação pública do seu trabalho, o que lhe tem permitido ter o controlo total da sua produção e ir construindo um corpo íntegro, embora de grande complexidade, multifacetado e plural. Alterna períodos de intensa produtividade com longas pausas, mergulhos em apneia, de extensão imprevisível, na sua esfera íntima e inacessível. São «momentos de crise», como os designa, de reflexão sobre o sentido do que produziu, embora continue sempre a preferir a intuição à erudição explícita. Esta recusa consciente de omnipresença nos territórios visíveis do circo mediático da arte permite-lhe salvaguardar-se da crise temporal na qual estamos todos tomados, «de um tempo atomizado, em que todos os momentos são iguais entre si», na aceção de Byung-Chul Han, sobrepondo a vida contemplativa à vida ativa.1 Cada reaparição pública da artista, cada nova exposição, é uma recorporização da sua própria obra, um renascimento, uma máscara fúnebre que reapresenta um corpo já distante e omnipresente, que é sempre a relação da artista com a sua obra — no sentido que Hans Belting define na sua antropologia das imagens — e é já, por isso, uma «corporização impura» que reclama o direito à sua autonomia e também a corporização de uma Ideia (idea) nova.2 O seu trabalho não é de resistência, de género, feminista, panfletário ou de denúncia, embora tenha uma subtil, poderosa e irónica dimensão política. Em obras como Jogos de Cama, de 1994, e especialmente a série O prazer é todo meu, do mesmo ano, armadilha o protocolo social do cumprimento reverencial e submisso, reclamando para si a totalidade do «Prazer». Demonstra uma plena consciência de um mundo dominado pelo paradigma masculino, caucasiano, heterossexual e poderoso política e financeiramente.
A ironia, melhor, a desmontagem dos protocolos e dos consensos — «do que é dado» — é a ferramenta que usa recorrentemente. Quer sejam protocolos de representação, de medida, de linguagem, de poder, de sexualidade, em suma, de significação. A memória oculta e distante dos espaços e dos objetos e a «experiência pré-pessoal» determinam a experiência reificada da obra. São assemblagens — condensações do espaço e, principalmente, condensações do tempo. A arquitetura, na sua dimensão espacial, temporal e de representação, volatiza-se em escultura, sublinhando a performatividade do espaço ou da casa como espaço dramatúrgico, alter ego do seu habitante.
Para esta exposição em que agora se apresenta, Patrícia Garrido decidiu um inesperado regresso à pintura — a sua disciplina de formação académica, cedo preterida pela fotografia, vídeo, escultura e instalação — realizando uma série de pinturas a óleo de pequena e média dimensão: são estranhas paisagens, espessas e crepusculares, «fora do tempo», como as assinala, que convocam e celebram o rigor oficinal da disciplina num alinhamento histórico sem reservas ou pudor. A pintura, sabemo-lo bem, é uma prática disciplinar de continuidade ao longo da sua história, desde a Idade Média e, principalmente, desde o Renascimento. Nenhuma outra disciplina artística resistiu aos apelos de outras práticas derivativas que as afastam de um possível momento matricial. A exposição integra também um conjunto de 14 esculturas de madeira e bronze, que corporizam os objetos de geometria irregular representados nas pinturas, e 35 desenhos inéditos de 2009. A circunstância de este regresso, em plena maturidade disciplinar da artista, ser materializado fazendo uso da pintura a óleo — técnica nunca antes utilizada por si — e escultura de bronze evidencia um novo renascimento, uma recorporização da sua própria obra, como antes referimos, e um «modo de fazer clássico, de voltar ao zero, ao princípio de tudo», como refere com precisão Helena de Freitas no ensaio escrito expressamente para esta exposição, e publicado no respetivo catálogo. Essas pinturas e, principalmente, essas esculturas são formas imperfeitas, seladas, esquifes de um corpo que nunca se revelará e que nunca entenderemos pelos caminhos da palavra. Representam uma qualquer estranheza, «coisas que ainda não sabem o que são (ou se vão ser), pluralidades de sentido em potência, analogias, figurações, divagações», como observa Pedro Pousada no outro ensaio que integra essa mesma publicação. Concluímos manifestando o nosso profundo agradecimento a Patrícia Garrido por se disponibilizar a produzir de raiz uma exposição tão vasta para o Círculo de Artes Plásticas de Coimbra. As 47 pinturas expostas resultam de uma seleção criteriosa da artista a partir de uma base de cerca de 100 obras produzidas para esta exposição. Foi um trabalho obstinado, totalmente concentrado, que pudemos ir acompanhando ao longo do último ano. É este o privilégio de quem priva com os artistas: poder ver em ateliê a progressão do seu trabalho, as suas dúvidas permanentes, as suas convicções inabaláveis, que podem durar uma vida, um ano, um dia ou um segundo.
Carlos Antunes, Corvo
Agosto de 2017
Organização
Círculo de Artes Plásticas de Coimbra
Produção
Ivone Antunes
Karen Bruder
Pedro Sá Valentim
Valdemar Santos
Assistência à produção
Jorge das Neves
Ivone Antunes
Montagem
Atelier Patrícia Garrido
Jorge das Neves
Fotografia
João Ferrand
Texto
Carlos Antunes
Revisão
Carina Correia
Direção de Arte
João Bicker
Design Gráfico
Joana Monteiro
Projeto educativo
Jorge das Neves
Pedro Sá Valentim
Valdemar Santos