“Para quê escrever poesia se pudemos falar pelo telefone?”
Assim me sinto quando olho para estas superfícies que abarcam o que rodeiam.
Estão lá apenas para nos devolverem o que já era, mas sobre um outro ângulo. Como a dizer – olha para este silêncio que parece mover-se, este silêncio desdobrado em outros, para este negro que tem dentro de si espaço, cada vez mais espaço.
E continua.
Percebes agora que “não existe a palavra espelho, só existem espelhos, pois um único é uma infinidade de espelhos” e quem caminha para dentro de seu espaço transparente sem deixar nele o vestígio da própria imagem, evita ver a luz para poder dizer:
“Sim, hoje regressei ao sonho
da morte como outra invenção,
talvez como a única verdade dentro deste equívoco.
E o que não sei é se pode morrer um morto.”
É esta violência que o silêncio cortante do rufar do tambor anuncia, violências e uma história de perda de sucessivas perdas, “no fundo, uma espécie de meditação sobre a morte de uma cultura e de uma arte, sobre as quais acabamos por pousar somente uns olhos já devorados”
E continua.
“Aquilo que quero é não ser mais gente.”
Sofia Turman Lys
Inscreve-se este novo ciclo no programa de estratégias que se endereçam à sociedade civil, que passam por posicionar algumas das actividades do CAPC em lugares da cidade onde haja uma maior circulação demográfica; pretende-se especificamente captar a atenção daqueles que não frequentam habitualmente o CAPC ou sequer conhecem o seu papel na produção e divulgação da produção artística contemporânea e desse modo socializar a mais-valia artística e simbólica que se concretiza nos diferentes espaços do CAPC (CAPC-Sereia, CAPC-Sede). De espaço cultural expectante que aguarda os seus espectadores, os seus visitantes, de espaço de representação do campo artístico contemporâneo o CAPC assumiria um contrato social com a cidadania anónima de Coimbra, realizaria uma migração dos seus conteúdos para o círculo da Civita Augescens, isto é para o interior dinâmico de Coimbra, para a sua capacidade de recepção e acolhimento dos outros, para a cultura da plurietnicidade e da supranacionalidade que definem o esforço desta urbe em se afastar do declínio demográfico e económico.
É o CAPC a descer à cidade, inquirindo e desconcertando os cidadãos, mobilizando o quotidiano, promovendo a capacidade de recepção crítica. O ciclo geral Território e acção será constituído por quatro ciclos: Santa Cruz, Espelho, Linha defensiva do Mondego e Link.
A história de Santa Clara a velha, é a migração de um corpus arquitectónico por diferentes condições de existência, diferentes actualidades: refúgio, casa e teatro de um mundo, estábulo, ruína, imagem, paisagem, monumento, tesouro arqueológico e finalmente laboratório e espaço museológico onde se mediatiza. Santa Clara é de facto um espaço definido pela pluralidade e descontinuidade dos seus fins.
O Mosteiro de Santa Clara ganhou o seu baptismo geriátrico (a velha) por incapacidade avançada; a função desprendeu-se da forma arquitectónica no último quartel do século XVII. E a liturgia deu lugar à pecuária.
Originalmente destinada às Penélopes beirãs, às proprietárias fundiárias (a parte feminina do cume da ordem social vigente) que recusavam um dono e que queriam decidir a economia dos seus bens, Santa Clara, a casa coimbrã das Damas Pobres, construiu-se como uma barreira arquitectónica contra a penetração forçada, contra a brutalidade testamentária do pecado original.
No uso deste edifício como no de tantos outros espaços conventuais, no regulamento do seu quotidiano intramuros, a consciência háptica do humano, a agonia dos limites e das necessidades (a comida, os perfumes, os cheiros, os sons, as febres, o desconforto do corpo em mudança, a menstruação, a fertilidade, a textura da experiência, os breviários, os excessos e as proibições carnais, as missas, a probidade, o egoísmo, o deve e o haver dos segredos pessoais e colectivos, a contabilidade das inúmeras rendas e doações, as obras, os olhares trocados, o ócio) e a renúncia dessa mesma condição humana, a busca de um dever ser mais que natural, a busca do sagrado (o transcendente, a incompletude do presente, o bem que faz o mal e o mal que faz o bem, o sacrifício, a paixão, a luta contra a repetição) foram mutuamente inclusivos.
Nas margens de um rio que os romanos chamavam Munda, claridade, ergueu-se nos finais do séc. XIII um refúgio contra o animalesco, a natureza, o inimigo; a clausura constituiu-se como um prolongamento de vida, como uma moeda de troca exigida pela protecção contra a intrusão androcêntrica, contra o matrimónio coercivo. A viúva de um soberano dedicou-lhe uma nova Igreja e um hospital. Mas esse rio, filho de uma cordilheira glaciar, existia nos interstícios do terreno, nas cavidades subterrâneas e disputando a solidez do terreno fez o mosteiro das Clarissas coimbrãs adquirir um horizonte lagunar. O claustro, as naves do templo, foram imergindo nas cheias do Mondego e o pequeno reino das Damas Pobres foi recalcitrando em diferentes pisos até ao seu abandono. O refúgio, a estética do lugar vivido, a policromia dos azulejos, a cantaria aprofundada por mãos inteligentes, as colunas, as abóbodas de berço, cederam o lugar à ruína, ao esquecimento, ao espaço alienado pelo tempo. O refúgio tornou-se a pictura de uma inutilidade, a representação de algo que já não podia ser, o emblema da decadência de todas as obras humanas mesmo das bem-intencionadas. A ruína improdutiva, insalubre, reumática tornou-se no séc. XX um tesouro de um certo tipo de vida humana, o vestígio físico de uma organização pré-burguesa e pré-industrial do espaço comunitário.
Na fase final do séc. XX, praticamente trezentos anos depois do seu abandono, o mosteiro adquire um novo estado cinético, uma nova exterioridade e uma nova subjectividade que o recoloca no mundo como objecto vivo: o Centro de Interpretação do Mosteiro de Santa Clara a Velha.
No desenho deste novo edifício inscrevem-se muitos elementos da investigação modernista: a evolução criadora do essencialismo geométrico que não mimetiza, que não ilustra mas que ao mesmo tempo consegue estabelecer uma relação narrativa com o lugar, a clareza funcional das partes, a fenomenologia do corpo que sai entrando, que toma consciência da reversibilidade entre o interior construído e o exterior contemplado, vivido. Uma nave longitudinal segmentada, com vastas fenestrações que acentuam a fluidez e não o sólido, o visível e não o escondido como propagação do real no espaço arquitectónico. Dois corpos (ruina+ monumento), (casa+ museu) enfrentam-se e completam-se (ou desfixam-se). O tempo é reconhecível por aquilo que define as diferenças entre estes dois pontos e no fluxo produzido pelo movimento entre essas categorias arquitectónicas o espaço supera a sua condição de veículo, de objecto e “mistura-se com o mundo”.
A motivação temática para a exposição que agora o CAPC organiza neste espaço sob o título de “Espelho” foi a condição inusitada de Santa Clara ter durante três séculos convivido com o seu simétrico reflectido nas margens do Mondego.
O estranhamento perceptivo com que se encarava a presença desta realidade ainda perdura na memória deste espaço. Essa relação entre o objecto e a representação invertida da sua exterioridade, a arquitectura “vendo e sendo vista a existir”, revitalizou contraditoriamente a matéria construída como uma anamnese liquida, expectante, como o espaço de uma vida anterior, terminada cujo duplo “afogado”, como “um salão no fundo de um lago”, era também a marca do incompleto e a invocação de um regresso.
A forma arquitectónica existiu duplamente como congelamento de um metabolismo antropológico — Santa Clara, a ruína, ganhara um carácter indexical, recordando a organização do isolamento comunitário, a hierarquização do espaço humanizado- e como auto-representação na superfície lacustre. O CAPC não podia deixar de revisitar o potencial de ambiguidade associado com esta experiência.
Pedro Pousada
Janeiro de 2012
“Para quê escrever poesia se pudemos falar pelo telefone?”
Assim me sinto quando olho para estas superfícies que abarcam o que rodeiam.
Estão lá apenas para nos devolverem o que já era, mas sobre um outro ângulo. Como a dizer – olha para este silêncio que parece mover-se, este silêncio desdobrado em outros, para este negro que tem dentro de si espaço, cada vez mais espaço.
E continua.
Percebes agora que “não existe a palavra espelho, só existem espelhos, pois um único é uma infinidade de espelhos” e quem caminha para dentro de seu espaço transparente sem deixar nele o vestígio da própria imagem, evita ver a luz para poder dizer:
“Sim, hoje regressei ao sonho
da morte como outra invenção,
talvez como a única verdade dentro deste equívoco.
E o que não sei é se pode morrer um morto.”
É esta violência que o silêncio cortante do rufar do tambor anuncia, violências e uma história de perda de sucessivas perdas, “no fundo, uma espécie de meditação sobre a morte de uma cultura e de uma arte, sobre as quais acabamos por pousar somente uns olhos já devorados”
E continua.
“Aquilo que quero é não ser mais gente.”
Sofia Turman Lys
Inscreve-se este novo ciclo no programa de estratégias que se endereçam à sociedade civil, que passam por posicionar algumas das actividades do CAPC em lugares da cidade onde haja uma maior circulação demográfica; pretende-se especificamente captar a atenção daqueles que não frequentam habitualmente o CAPC ou sequer conhecem o seu papel na produção e divulgação da produção artística contemporânea e desse modo socializar a mais-valia artística e simbólica que se concretiza nos diferentes espaços do CAPC (CAPC-Sereia, CAPC-Sede). De espaço cultural expectante que aguarda os seus espectadores, os seus visitantes, de espaço de representação do campo artístico contemporâneo o CAPC assumiria um contrato social com a cidadania anónima de Coimbra, realizaria uma migração dos seus conteúdos para o círculo da Civita Augescens, isto é para o interior dinâmico de Coimbra, para a sua capacidade de recepção e acolhimento dos outros, para a cultura da plurietnicidade e da supranacionalidade que definem o esforço desta urbe em se afastar do declínio demográfico e económico.
É o CAPC a descer à cidade, inquirindo e desconcertando os cidadãos, mobilizando o quotidiano, promovendo a capacidade de recepção crítica. O ciclo geral Território e acção será constituído por quatro ciclos: Santa Cruz, Espelho, Linha defensiva do Mondego e Link.
A história de Santa Clara a velha, é a migração de um corpus arquitectónico por diferentes condições de existência, diferentes actualidades: refúgio, casa e teatro de um mundo, estábulo, ruína, imagem, paisagem, monumento, tesouro arqueológico e finalmente laboratório e espaço museológico onde se mediatiza. Santa Clara é de facto um espaço definido pela pluralidade e descontinuidade dos seus fins.
O Mosteiro de Santa Clara ganhou o seu baptismo geriátrico (a velha) por incapacidade avançada; a função desprendeu-se da forma arquitectónica no último quartel do século XVII. E a liturgia deu lugar à pecuária.
Originalmente destinada às Penélopes beirãs, às proprietárias fundiárias (a parte feminina do cume da ordem social vigente) que recusavam um dono e que queriam decidir a economia dos seus bens, Santa Clara, a casa coimbrã das Damas Pobres, construiu-se como uma barreira arquitectónica contra a penetração forçada, contra a brutalidade testamentária do pecado original.
No uso deste edifício como no de tantos outros espaços conventuais, no regulamento do seu quotidiano intramuros, a consciência háptica do humano, a agonia dos limites e das necessidades (a comida, os perfumes, os cheiros, os sons, as febres, o desconforto do corpo em mudança, a menstruação, a fertilidade, a textura da experiência, os breviários, os excessos e as proibições carnais, as missas, a probidade, o egoísmo, o deve e o haver dos segredos pessoais e colectivos, a contabilidade das inúmeras rendas e doações, as obras, os olhares trocados, o ócio) e a renúncia dessa mesma condição humana, a busca de um dever ser mais que natural, a busca do sagrado (o transcendente, a incompletude do presente, o bem que faz o mal e o mal que faz o bem, o sacrifício, a paixão, a luta contra a repetição) foram mutuamente inclusivos.
Nas margens de um rio que os romanos chamavam Munda, claridade, ergueu-se nos finais do séc. XIII um refúgio contra o animalesco, a natureza, o inimigo; a clausura constituiu-se como um prolongamento de vida, como uma moeda de troca exigida pela protecção contra a intrusão androcêntrica, contra o matrimónio coercivo. A viúva de um soberano dedicou-lhe uma nova Igreja e um hospital. Mas esse rio, filho de uma cordilheira glaciar, existia nos interstícios do terreno, nas cavidades subterrâneas e disputando a solidez do terreno fez o mosteiro das Clarissas coimbrãs adquirir um horizonte lagunar. O claustro, as naves do templo, foram imergindo nas cheias do Mondego e o pequeno reino das Damas Pobres foi recalcitrando em diferentes pisos até ao seu abandono. O refúgio, a estética do lugar vivido, a policromia dos azulejos, a cantaria aprofundada por mãos inteligentes, as colunas, as abóbodas de berço, cederam o lugar à ruína, ao esquecimento, ao espaço alienado pelo tempo. O refúgio tornou-se a pictura de uma inutilidade, a representação de algo que já não podia ser, o emblema da decadência de todas as obras humanas mesmo das bem-intencionadas. A ruína improdutiva, insalubre, reumática tornou-se no séc. XX um tesouro de um certo tipo de vida humana, o vestígio físico de uma organização pré-burguesa e pré-industrial do espaço comunitário.
Na fase final do séc. XX, praticamente trezentos anos depois do seu abandono, o mosteiro adquire um novo estado cinético, uma nova exterioridade e uma nova subjectividade que o recoloca no mundo como objecto vivo: o Centro de Interpretação do Mosteiro de Santa Clara a Velha.
No desenho deste novo edifício inscrevem-se muitos elementos da investigação modernista: a evolução criadora do essencialismo geométrico que não mimetiza, que não ilustra mas que ao mesmo tempo consegue estabelecer uma relação narrativa com o lugar, a clareza funcional das partes, a fenomenologia do corpo que sai entrando, que toma consciência da reversibilidade entre o interior construído e o exterior contemplado, vivido. Uma nave longitudinal segmentada, com vastas fenestrações que acentuam a fluidez e não o sólido, o visível e não o escondido como propagação do real no espaço arquitectónico. Dois corpos (ruina+ monumento), (casa+ museu) enfrentam-se e completam-se (ou desfixam-se). O tempo é reconhecível por aquilo que define as diferenças entre estes dois pontos e no fluxo produzido pelo movimento entre essas categorias arquitectónicas o espaço supera a sua condição de veículo, de objecto e “mistura-se com o mundo”.
A motivação temática para a exposição que agora o CAPC organiza neste espaço sob o título de “Espelho” foi a condição inusitada de Santa Clara ter durante três séculos convivido com o seu simétrico reflectido nas margens do Mondego.
O estranhamento perceptivo com que se encarava a presença desta realidade ainda perdura na memória deste espaço. Essa relação entre o objecto e a representação invertida da sua exterioridade, a arquitectura “vendo e sendo vista a existir”, revitalizou contraditoriamente a matéria construída como uma anamnese liquida, expectante, como o espaço de uma vida anterior, terminada cujo duplo “afogado”, como “um salão no fundo de um lago”, era também a marca do incompleto e a invocação de um regresso.
A forma arquitectónica existiu duplamente como congelamento de um metabolismo antropológico — Santa Clara, a ruína, ganhara um carácter indexical, recordando a organização do isolamento comunitário, a hierarquização do espaço humanizado- e como auto-representação na superfície lacustre. O CAPC não podia deixar de revisitar o potencial de ambiguidade associado com esta experiência.
Pedro Pousada
Janeiro de 2012
Organização
Círculo de Artes Plásticas de Coimbra
Mosteiro de Santa Clara-a-Velha
Montagem
Círculo de Artes Plásticas
Fotografia
Nuno Cera
Círculo Verso
Moirika Reker Gilberto Reis
Secretariado
Ivone Antunes
Texto
Pedro Pousada
Sofia Turman Lys
Direção de Arte
Artur Rebelo
Lizá Ramalho
João Bicker
Design Gráfico
José Maria Cunha