O corpo da casa, desta casa, sabe que outros pensaram e fizeram as coisas como nós. Caíram e levantaram-se, foram abrindo portas, erguendo barreiras nas decisões que tomavam ou em que hesitavam, tropeçando nos silêncios que escondem as palavras, reacendendo-se, por vezes com as sobras, com o colateral da realidade que viveram, tornando-se estranhos, disjuntos a si próprios com gestos agora incorrigíveis, saltando por cima sem o saberem da terra firme do seu presente e de cada vez que o faziam inventando uma espécie de “história da realidade alternativa” para o verdadeiro habitante, a verdadeira textura das suas paredes: “uma coisa simples mas difícil de fazer”.
O que nos surge nesta exposição é o encontro entre duas contingências que não são partes contrárias mas necessárias, a dessa casa-corpo já constituída como significação social, e a de uma casa-ideia que desloca o foco da nossa atenção, tornando a presença da casa, mas uma presença metabólica, dissonante, incompleta, isto é a sobredeterminação da sua interioridade, como um tema audível e intrínseco ao projecto artístico de António Olaio.
A casa torna-se assim energia que se movimenta dentro das pinturas e dos vídeos que António Olaio nos presentifica, ela própria torna-se site-specific (o significante hospedando-se num significado intramuros e de portas batentes). Repetir para tornar diferente constitui uma tarefa artística incontornável; serve, basicamente, para resgatar os objectos do vazio de sentido em que vivem de modo a que eles, já não formas mas cinética pura, façam sair dos eixos o que os rodeia. É esta a integridade poética do projecto que, aqui, neste corpo que se tornou casa que se tornou ideia, António Olaio nos propõe.
As imagens não podem ser espelhos, não podem ser o jogo especular de quem se vê duplamente como princípio e horizonte, mas recipientes translúcidos onde vida emocional (o ser biológico) e estilização (o ser mecânico) se distorcem mutuamente como mementos mori de uma consciência criativa. Sim, mortalidade e desordem posicionam-se aqui como princípios activos: na décalage do soalho ligando o espaço real, de uso quotidiano, da casa aos interstícios de um espaço sem saída, um espaço condicional feito a partir da ideia de biombo (como o sujeito quando se torna um inquilino de si próprio), na capa negra, autotélica que se torna um avatar inesperado desabrigando-se do corpo em que se suspende, no ponto vélico em que os pés filmados e o “convés” da casa se tornam a mesma história tensional (como num conto de Júlio Cortazar), esses pés hereditários que vão irrompendo pelas salas como testemunhos expectantes de que a inocência cresce, viaja e cessa de existir e que é essa incisão, o que já lá não está, o que deixou de ser (vivido e sentido), é o seu vazio que nos perturba. O vídeo dos pés desenhando o piso que os desenha, a pintura recortando a substância, subjugando o contorno da figura a uma dança de fissuras, de impressões estranhas, como que nos dizem que a realidade pode também ser uma amálgama cada vez mais comprimida e violenta de “inclusões disjuntivas”.
Pedro Pousada
Maio de 2010
O corpo da casa, desta casa, sabe que outros pensaram e fizeram as coisas como nós. Caíram e levantaram-se, foram abrindo portas, erguendo barreiras nas decisões que tomavam ou em que hesitavam, tropeçando nos silêncios que escondem as palavras, reacendendo-se, por vezes com as sobras, com o colateral da realidade que viveram, tornando-se estranhos, disjuntos a si próprios com gestos agora incorrigíveis, saltando por cima sem o saberem da terra firme do seu presente e de cada vez que o faziam inventando uma espécie de “história da realidade alternativa” para o verdadeiro habitante, a verdadeira textura das suas paredes: “uma coisa simples mas difícil de fazer”.
O que nos surge nesta exposição é o encontro entre duas contingências que não são partes contrárias mas necessárias, a dessa casa-corpo já constituída como significação social, e a de uma casa-ideia que desloca o foco da nossa atenção, tornando a presença da casa, mas uma presença metabólica, dissonante, incompleta, isto é a sobredeterminação da sua interioridade, como um tema audível e intrínseco ao projecto artístico de António Olaio.
A casa torna-se assim energia que se movimenta dentro das pinturas e dos vídeos que António Olaio nos presentifica, ela própria torna-se site-specific (o significante hospedando-se num significado intramuros e de portas batentes). Repetir para tornar diferente constitui uma tarefa artística incontornável; serve, basicamente, para resgatar os objectos do vazio de sentido em que vivem de modo a que eles, já não formas mas cinética pura, façam sair dos eixos o que os rodeia. É esta a integridade poética do projecto que, aqui, neste corpo que se tornou casa que se tornou ideia, António Olaio nos propõe.
As imagens não podem ser espelhos, não podem ser o jogo especular de quem se vê duplamente como princípio e horizonte, mas recipientes translúcidos onde vida emocional (o ser biológico) e estilização (o ser mecânico) se distorcem mutuamente como mementos mori de uma consciência criativa. Sim, mortalidade e desordem posicionam-se aqui como princípios activos: na décalage do soalho ligando o espaço real, de uso quotidiano, da casa aos interstícios de um espaço sem saída, um espaço condicional feito a partir da ideia de biombo (como o sujeito quando se torna um inquilino de si próprio), na capa negra, autotélica que se torna um avatar inesperado desabrigando-se do corpo em que se suspende, no ponto vélico em que os pés filmados e o “convés” da casa se tornam a mesma história tensional (como num conto de Júlio Cortazar), esses pés hereditários que vão irrompendo pelas salas como testemunhos expectantes de que a inocência cresce, viaja e cessa de existir e que é essa incisão, o que já lá não está, o que deixou de ser (vivido e sentido), é o seu vazio que nos perturba. O vídeo dos pés desenhando o piso que os desenha, a pintura recortando a substância, subjugando o contorno da figura a uma dança de fissuras, de impressões estranhas, como que nos dizem que a realidade pode também ser uma amálgama cada vez mais comprimida e violenta de “inclusões disjuntivas”.
Pedro Pousada
Maio de 2010
Organização
Círculo de Artes Plásticas de Coimbra
Montagem
Círculo de Artes Plásticas
Círculo do Verso
António Olaio
Secretariado
Ivone Antunes
Texto
Pedro Pousada
Direção de Arte
Artur Rebelo
Lizá Ramalho
João Bicker
Design Gráfico
José Maria Cunha